A peste
Parece que tudo está a se esvair
Como grãos de areia caindo na ampulheta.
Miserável interpretação da vida.
A cada instante superado
Cobra o tempo um novo ato.
Se ao menos desse uma trégua
Valeria a pena o segundo de vida real.
Esta história você já a conhece. Viveu-a e sobreviveu. Começa distante, vem se aproximando e arregaça. Mata na casa dos milhares, até chegar ao meio milhão. Mata por asfixia e escuridão. Em meio as estatísticas mórbidas, frias, aos cadáveres que não sensibilizam, é preciso achar um e dar-lhe uma identidade, chamá-lo pelo primeiro nome, do contrário a história se converte num balancete catacumbal, valas de indigentes amontoados, abrindo espaço para mais um, como nas baixas de guerra. Brincam-se com os números. Na contagem dos milhões, centenas não coçam, dezenas beliscam e a unidade desaparece na importância macabra do placar atualizado, como cifras a girar no impostômetro a cada fração de segundo que passa.
A peste veio e arrasou porções da humanidade. Levou consigo meu melhor amigo, quem um dia amei e depois fingi que o esqueci por falta de amor próprio. Não o via há muito tempo, desde a última vez que o evitei. A notícia de sua morte me arrebatou e me fez refletir sobre o que está dito neste breve fragmento o qual, já adianto, não é uma despedida.
Isso não passa de palavras amargas feitas para atingir pessoas que te querem bem. É fácil ser injusto com elas, porque sabes que vão te perdoar. Mágoas se perdoam com amizade. Ingratidão também. E essa é a mais difícil de perdoar. Toda uma vida abreviada. Nessa hora que exijo culpados além da peste, meu coração se enche de raiva e inconformismo, porque é só com ódio que sou obrigado a lidar com sua morte precoce. Não a aceito por ordem divina. Existem culpados. E eu os queria mortos no seu lugar.
Posso vê-lo chegando na escola de cabelo lavado e blusa cinza pra dentro da calça, segurando a lancheira que tia Wilma preparou, abrindo o fichário dividido em páginas contadas e adesivos coloridos. Melancolia. Sabor de perda do que um dia foi. Você está bem aqui do meu lado. Foi ontem. E é tudo tão efêmero. Não é a primeira vez que sinto isso, tem sido assim nos últimos anos — acho que a efemeridade é a marca do presente afastado. Durante a aula, nem um pio — você e a sua obediência militar, você e aquele repugnante respeito por quem detinha a palavra. Adorava história, como eu, e amiúde me corrigia, a confusão que eu fazia entre os períodos colonial e imperial, o que para mim nada mais foi do que a sucessão imperial do açúcar por uma nobreza estamental, a mesma merda do Brasil fazenda, e me corrigia com ar de superioridade, coisa irritante, fazendo-me ansiar pelo seu tropeço, para que chegasse a minha vez de te corrigir com humildade. Era o seu jeito, não era, meu amigo? Uma certa soberba, confiança a mais. Irritante demais.
Na hora do recreio, os times já saíam montados. Deveríamos ter variado mais para que não fôssemos tantas vezes rivais. Era atacante, éramos todos, ninguém queria ser goleiro, daí a chuva de gols. Você marcava três, na banheira, e já se achava o dono da posição. Pelo menos marcava. Torcia para o Flamengo, sua maior paixão. Eu torcia contra. Eu e mais uma meia dúzia, injustamente apelidada como gente do contra, só porque nos opúnhamos à maioria naquele nosso Bom Jesus rubro-negro. Hoje você estaria tão feliz pelo seu time, me rasga saber que foi privado até desse consolo. Era para você estar aqui. Com certeza, era.
O futebol também servia de pretexto para churrascos que se estendiam até o começo da madrugada. Tia Vilma dizendo que já era tarde, e tio Sobreira rebatendo que amanhã é domingo, vou colocar mais uma peça para assar. Neste momento, não é nada original mensurar a dor que sentem. Até poderia tentar, porque perdi meu pai não faz muito tempo. Mas são dores distintas, a perda de um pai da de um filho. O filho foi cinquenta anos antes da hora. E ninguém que ama viver deveria ir com menos de noventa, nem meu pai.
Tia Vilma e tio Sobreira são um casal sobre o qual guardo várias recordações, poucas ótimas. Considero inútil ressuscitá-las porque já não creio que palavras doces sirvam para aliviar a dor que precisa ser forte e sentida. Luto tem que ferir, como as palavras. É para rasgar a alma e nos fazermos culpados, por tudo que não vivemos, por tudo que deveria ter sido diferente e melhor. É a história fatídica nos lembrando da nossa insignificância mortal, do quanto a solidez dos sentidos mais verdadeiros tampouco resiste à brevidade da vida e que todos nós seremos esquecidos. A posteridade é uma ilusão de quem não sabe lidar com fins.
Ainda ontem meu amigo estava sentado na carteira ao meu lado. E agora penso por que nos afastamos, se há algo a lamentar, no porquê de uma amizade desfeita e em tudo que deixamos de fazer — teria sido um prazer ter feito ao seu lado. Gostava de acreditar que ainda teríamos tempo para recuperar, para começar de novo, não de onde paramos, de um outro lugar e, por favor, do zero, do zero que eu amo, do zero que eu quero fazê-lo vingar, menos inocente, mais corajoso, mais inconformado, mais radical, mas nós dois sabemos que isso é autoengano. Admito que até hoje, agora mesmo que soube da sua morte, te projeto da forma que me convém. Quero crer que nós dois, mas você mais, deveríamos ter sido mais radicais. Hoje aceito remorsos. Com cinquenta anos, às vezes eles me consomem por inteiro e depois dão uma trégua até voltar. Desses meus lamentos, com você eu queria me frustrar não uma, uma é sempre muito pouco, não é nada, mas ao menos mais umas nove vezes. Ainda não tinha desistido. E você sabe que eu desisto fácil demais. Tínhamos que ter tentado. Era para eu ter dado o primeiro passo. Não esperei que você desse, fui eu quem não quis dar.
Você sabe. A gente cresce e as amizades secam. É por causa das rabugices, da seletividade, do que já não dispomos a tolerar. Nessa interpretação de que o tempo é precioso porque se esvai, queremos dividi-lo com os nossos escolhidos, com os nossos melhores, e nós nos preterimos; preterimos os bons pelos melhores. Não te escrevo como um velho amigo, um irmão camarada, coisa que nunca fomos. Distância não é desculpa. Teríamos sido ótimos vizinhos desconhecidos, estou certo disso — acenos distantes, comentários frívolos, de vez em quando um aperto de mão. Então, por que penso em você? Você acha que sinto necessidade de me despedir? Acha que é por isso?
Não é. Pensei em você outras tantas vezes — e faço questão dessas palavras não serem lidas na sua morte. Se forem lidas, que sejam num dia qualquer, de preferência numa terça chuvosa e no começo da tarde, num desses quintais com chá e monotonia, e que sejam lidas por quem tem amizades a reatar. Do que adiantaram tantos planos? Tantas preocupações com futilidades? Acho que damos importância a elas só para depois termos com que nos arrepender. Queria ter tentado de novo, e que não fosse pela última vez. Detesto ultimatos. Queria ter tido várias chances e eu as te daria também. Não iríamos aproveitá-las, mas como é reconfortante saber que poderíamos tentar de novo e de novo. Na próxima, prometo que não ficarei relembrando a infância, tentarei não me comparar e falharei. Depois de cinco anos, mais um reencontro, tão frio como o último, a mesma sensação de que coisas boas ficaram para trás. O diabo é que, saibamos ou não, sempre existe a última vez.
Perco um bom amigo. Bom, porque evito hipérboles. Bom, porque foi o que você era: um bom amigo. Você sabe que nunca enalteci a infância. Sempre quis ser adulto e não acho que me tornei um antes da hora. Vivi a infância e ela não foi linda. As brincadeiras ao ar livre não eram tão legais assim. Meus lamentos vencem as saudades. No entanto, vejo-me obrigado a reconhecer que você foi um dos meus amigos de infância. E, por favor, não entenda o amigo de infância como o melhor amigo. Tive outros adulto — e se você quer saber, melhores do que você, os meus escolhidos. Com você não foi diferente. Fomos amigos de infância porque só na infância poderíamos ter sido amigos.
Não a romantizo. Ao contrário: gabo-me por pensar pouco no passado. Luto para não pensar e muitas vezes consigo; quando falho, não vêm apenas memórias boas — e você não é o único a estar nelas, mas você está, e se está, é porque nos desentendemos. Sem rancor, já teria te esquecido. E sem rancor, não teríamos sido amigos. Antes as feridas que os abraços. Aquelas são a prova de que não te esqueci. E eu gostaria muitíssimo de esquecer, não só você, mas todo o passado. Conseguir esquecer é uma virtude linda, acho que é a maior que existe, por isso invejo dona Lúcia contemplada com cada memória despedaçada. E de você nunca esqueci. Pensei tantas vezes em você, meu amigo, na minha solidão engrandecida. Talvez não tenha sido tantas assim, acho que foram.
Quarenta e cinco anos. Ia se casar, finalmente. Tinha me mandado o convite e eu já tinha decido a não ir. É tudo tão efêmero. Até ontem estava sentado do lado da minha carteira. A blusa cinza do MV1 para dentro da calça, almofadinha, a lancheira preparada com carinho pela mamãe. A excursão da escola de inglês para o Playcenter em São Paulo, quatorze horas dentro de um ônibus. A final do campeonato de futsal na AABB, que você ganhou, eu perdi, e você nunca jogou fora a medalha. Como vencer era importante para você, meu amigo, não era? Não é uma crítica, ou talvez seja, sim. Mas era você, a sua vontade ali. Por algum tempo fiz troça disso, só porque eu nunca fui assim. Afinal, éramos diferentes em tudo. Você era ambicioso, determinado e individualista. E eu, bem, você sabe como eu sou. Hoje aceitaria melhor quem você era, mas nós dois sabemos que hoje já seria tarde, ficou para trás.
Agora me pego imaginando se você não tivesse morrido. Dos nossos reencontros futuros no Bom Jesus, oxalá melhores que os últimos, cada qual mais frio e sem graça. Chegou o momento em que aceitamos o fim da nossa amizade, apenas não o admitimos. Essa é a verdade. O momento em que desistimos de manter algo que já não existe só para contabilizar mais uma amizade distante. Poderia dizer que gostaria que tivesse sido diferente, mas percebo a falsidade nisso. Hoje eu te digo que o fim é natural; que as boas amizades, as melhores, também morrem. Se não morrem, enfraquecem de um jeito que é inútil revivê-las, como se o que se foi fosse possível de novo. Por isso eu te digo que, se você não tivesse morrido, nós não voltaríamos a ser bons amigos. Eu não sinto obrigação alguma de ressuscitar uma amizade perdida porque você morreu.
Sei que é fatalista colocar as coisas nesses termos, mas qual é a alternativa: mentir? Alimentar a ilusão de que nunca é tarde para recuperar algo lindo e ultrapassado? A verdade é que nunca mais seríamos quem fomos. E essa ânsia em ressuscitar algo perdido, na esperança de que volte a ser como era, como nós dois sabemos, é autoengano. Creio mais na amizade esvaída. É provável que reste no fim uma fagulha; deve haver, sim, mas deveríamos nos apegar a ela, para quê? Por resistência a encarar o rompimento? Não, não vou me apoiar em fagulha para te dizer frases prontas a vinte anos atrás. Foi um imperativo que nos afastássemos. Não tenho saudades. Gosto de dizer que não tenho. Teria feito muitas coisas de outro jeito. Tenho quarenta e cinco anos e carrego remorsos incuráveis.
Mas, de tudo o que poderia ter sido diferente, de modo algum teríamos sido mais amigos do que fomos durante aquele tempo contado, quem dera pudéssemos ter sido indefinidamente. Minhas comparações o rebaixavam. Você ouvia Bon Jovi, Guns e Red Hot; eu desdenhava do seu gosto meigo e apregoava do alto do meu saber raso que rock de verdade era Led, Rush e The Who. Gostava de me considerar progressista até na música. Lembra do quanto insisti para que fosse comigo no Rush in Rio? Você não foi e eu perdi o melhor show da vida. YYZ, surreal. Instrumental cantado. Seis minutos de levitação e nenhum celular para o alto. Outros tempos, e nem faz tanto tempo assim. Novembro de 2002. Foi ontem. E nunca vai se repetir. Neil Peart morreu. O Rush acabou. As coisas acontecem no seu tempo e acabam, têm que acabar. Ou simplesmente não acontecem porque nós não as fizemos acontecer. É falha nossa. Como detesto a inação. É o pior dos remorsos.
Éramos assim. Eu queria brincar; você, competir. Eu adorava empates para deixar tudo igual; você estimava demais vencer — e eu sei que não era por exibição, era para provar a si mesmo; sou eu quem não tinha a mesma necessidade de provação. Você queria se formar e ganhar dinheiro, eu queria pensar nisso depois. Você interrompia a pelada para admirar carros importados e jurava a si mesmo que um dia teria um; eu nunca liguei para carros, viajava no dedo e jurava a mim mesmo que a vida com desapego é uma vida superior. Você tinha tudo bolado, sempre soube que queria ser juiz e endeusava o mérito dos seus ídolos imortais que superam o impossível e depois palestram força, foco e fé a plateias executivas, e os que estão lá no alto são alpinistas. Eu mascarava a total falta de objetivos com aventuras vazias que me faziam pensar que aquilo, sim, era viver.
Risíveis. Você e eu. Você, cego nas suas vitórias e adulações, na sua ambição iludida; eu na minha mesquinhez disfarçada de frugalidade e na covardia de quem foge de decisões cruciais. Pelo menos ninguém tentou pressionar o outro de que estava certo — na verdade tentamos, sim, eu e você, cada um à sua maneira - fomos nos aceitando, e o aceite, no nosso caso, só viria com afastamento e a perda da cumplicidade. E nessa hora que nos toca uma gota de sinceridade, deixe-me te dizer que vibrei com cada um dos seus fracassos na sua empreitada magisterial. Você teria sido um juiz horrível, punitivo, racista. Deveria ter tentado a promotoria.
No entanto, como a sua morte me machuca. Faz-me recordar do que não gostaria, estraçalha-me de tal forma que só consigo exprimir desse jeito falho nessa carta. Prometo que não será de despedida, não ainda. E olha que eu gosto de despedidas. De fechar portas, de não olhar para trás. Ainda somos jovens. É reconfortante confiar num futuro irreal, quando teremos tempo de nos redimir. Não teremos? Conseguiremos? Não, não vou me despedir. Prometo que vou te esquecer outras vezes. Não prometo que será na constância que você gostaria — aí está nossa afinidade, a vaidade. Porque não vou pensar em você toda hora; pensarei em você apenas em momentos especiais como esse. É imprescindível que haja tais momentos espaçados. Porque, por mais que eu deseje deixar tudo para trás, sei que as coisas não são assim. Eu te prometo então que vou impedir que nossa amizade enfraquecida morra de vez, agora que é inútil distinguir os melhores dos bons.
Meu bom amigo, Bruno, não te esqueci. Uma merda você ter ido tão antes da hora. Não existe consolo. Não era para você ter ido. Está errado. Alguém tem culpa. Nós sabemos quem. Desperta uma ira em mim nada cristã. E eu me alegraria se afinal morresse. Quem sabe assim o país encontrasse calma. É a maldita culpa que nos corrói. Era para você ter se casado, ela te ama. Era para eu ter te felicitado com um abraço e eu odeio quem nos privou dele. E você resistiu que eu sei. Resistiu como quem não queria ir e se foi em circunstâncias horríveis. Então, não posso aceitar passivo. Tem que ser com indignação. Quem pode dizer qual é a hora? Eu posso. E digo que não era essa. Não você. Peste desgraçada. Não quero que vá em paz. Fique aqui, aí, distante. Pelo menos para a gente continuar se comparando e eu ainda me iludir que meu bom amigo de infância ainda é meu amigo. Não me despeço. Vá, vá de uma vez, vá porque não quero mais pensar em você. Sempre quis te dizer adeus, e só não disse porque nossa história não é um filme. Quem iria se interessar? Eu não. Eu já não a aguento mais. Estou farto de assistir a história dos outros e abrir mão da minha. Eu quero viver, Bruno, não por você, é claro. Pronto. Aí está o seu igualitário egoísta. Quero viver um pouco mais, conformado e desiludido, porque temo o fim que tanto amo, porque temo que ele seja como penso que ele é, definitivo. Se assim for, não haverá adeus necessários. Tudo o que fomos um dia acabou, e a nossa história esquecida, à qual tanto quis dar um ponto final, será varrida pelo tempo como as outras o foram, e os que virão tentarão reescrevê-la sem saber que seus heróis são impostores, afinal a história não se repete, só rima, e é tão odienta e presumível como todas que terminam com o mesmo final. Até nunca mais, meu amigo.